No judaísmo, pautado pela Lei de Moisés, havia e há, ainda hoje, uma rígida distinção entre alimentos puros e impuros. Ora, para o cristianismo tal distinção não tem mais nenhum valor. O próprio Jesus afirma isto claramente: “‘Nada há no exterior do homem que, penetrando nele, o possa tornar impuro...’ Assim ele declarava puros todos os alimentos” (Mc 7,14.19). Mais tarde, os Atos dos Apóstolos confirmam a mesma idéia (cf. At 10,9-16). Também o texto que você citou, At 15,26-29. E São Paulo, principalmente, insiste que tal distinção foi totalmente superada em Cristo. Somente um exemplo: “Ninguém vos julgue por questões de comida e de bebida, ou a respeito de festas anuais ou de lua nova ou de sábados, que são apenas sombra de coisas que haviam de vir, mas a realidade é o corpo de Cristo. Se morrestes com Cristo para os elementos do mundo, por que é que vos sujeitais, como se ainda vivêsseis no mundo, a proibições como ‘não pegues, não proves, não toques’” (Cl 2,16-17.20-21). Observe que aqui o Apóstolo faz uma afirmação importantíssima: todas as observâncias da Lei de Moisés eram apenas sombra (isto é, profecia, preparação pedagógica) para a Realidade. E qual é a Realidade? É o Cristo ressuscitado, presente no seu Corpo, que é a Igreja. A Realidade não é o povo de Israel, não é a Lei de Moisés, mas o novo povo de Deus, que é a Igreja, Corpo de Cristo: a Realidade é o Corpo de Cristo! São Paulo considera totalmente ultrapassada a guarda do sábado, a distinção entre animais puros e impuros e todas as observâncias judaicas.
E por que isto? Primeiramente, porque Cristo renova todas as coisas, pela sua morte e ressurreição e reconcilia tudo com o Pai: “Eis que eu faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). O próprio São João vai dizer: “Vi um novo céu e uma nova terra” (Ap 21,1). Ora, na criação renovada em Cristo, já não há lugar para afirmar que alguma coisa é impura. Isso seria diminuir a obra de Cristo, seria afirmar que algo na criação ficou fora da sua salvação, da força da sua cruz!
Mas tem mais. Não foi somente um ou outro ponto que Jesus aboliu na Lei de Moisés. É toda a Lei de Moisés que, com Jesus, está superada! Atenção: superada, não abolida! Compreendamos. São Paulo diz que a Lei era nossa pedagoga, isto é, nos preparava para o Cristo. Agora que o Cristo chegou, ela não tem mais utilidade (cf. Gl 3,24). Como o pedagogo levava a criança até a escola e a deixava lá, assim, a Lei conduziu o povo de Israel a Cristo. Tudo quanto ela prometera, cumpriu-se em Cristo. Ela já não tem mais utilidade. Veja bem: ela não passou, não foi anulada, não caiu de podre! Ela foi cumprida, isto é, realizada plenamente e, por isso mesmo, não tem mais utilidade. Como um botão, que se cumpre na rosa e passa; como um treino, que se cumpre no dia da partida e passa; como um ensaio, que se cumpre no dia do show e passa! Jesus disse que jamais um iota da Lei iria passar, sem que tudo se cumprisse! Pois bem: ele cumpriu tudo! Exemplos? Eis alguns: a travessia do povo no deserto, cumpriu-se na travessia da Igreja pelo deserto do mundo, o maná cumpriu-se na Eucaristia, a travessia do Mar Vermelho cumpriu-se no Batismo, Jerusalém, o povo de Israel, Sião, cumpriram-se na Igreja, Adão, Isaac, Davi cumpriram-se em Jesus, o sábado cumpriu-se no domingo, a serpente do deserto cumpriu-se no Cristo crucificado, os dez mandamentos cumpriram-se na nova lei, que é o Espírito Santo de Amor...
Isto é muito importante! Quando as seitas protestantes pentecostais ficam tomando preceitos do Antigo Testamento, como a questão de imagens, de guardar o sábado, de não fazer transfusão de sangue, de batizar nas águas e de outras coisas, elas, no fundo estão negando que Cristo cumpriu a Lei! Se é assim, então que se tornem judeus! É isto que São Paulo diz aos gálatas. Leia a Epístola! Isto é central no cristianismo: nós não temos mais nenhuma obrigação de cumprir os preceitos do Antigo Testamento! A única lei nossa é a lei do Novo Mandamento, a lei do amor: amar a Deus e aos irmãos como Jesus... até a morte, até dar a vida! “Não devais nada a ninguém, a não ser o amor mútuo, pois quem ama o outro, cumpriu a Lei. Portanto, a caridade (= o amor) é a plenitude da Lei” (Rm 13,8-10).
Fica ainda uma questão. Se não mais estamos obrigados a cumprir o Antigo Testamento, por que a Igreja o conserva? Por que o lê na Santa Missa? Ora, o Antigo Testamento tem quatro utilidades: (1) dá testemunho de Cristo, mostrando como o Pai prometeu e preparou tudo para o seu Filho, de modo que Jesus foi anunciado e esperado; (2) mostra a fidelidade amorosa de Deus que, na sua misericórdia, conduziu e perdoou Israel e, assim, nos faz amar mais o Senhor e nele confiar; (3) mostra os pecados e infidelidades de Israel e, assim, nos dá lições, pois nos previne e revela também nossas fraquezas, (4) ajuda-nos na piedade para com Deus. Basta! Além disso, não se deve pedir nada mais do Antigo Testamento!
Dom Henrique Soares da Costa - Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Aracaju.
Dom Henrique Soares da Costa - Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Aracaju.